Medidas judiciais de proteção à mulher crescem 18,5% em um ano

Data da postagem: 8/03/2016
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Passava das 22h quando, num ímpeto, Ana* apanhou os três filhos de pijama — o caçula, de 6 anos, estava descalço — e entrou num táxi. Os quatro desembarcaram numa Delegacia de Atendimento à Mulher onde a diarista, de 45 anos, desfiou agressões de mais de uma década. “Qualquer dia desses um carro lhe atropela na rua, vagabunda”, ouviu do marido naquela noite de novembro. Dias depois, ela conseguiria uma medida judicial garantindo que o homem com quem passou 16 anos permanecesse a uma distância de não menos de 250 metros. Não mais o viu. Nem quer ver.

— A decisão vale por 90 dias, mas se quando acabar ele quiser voltar a entrar em casa, denuncio de novo. Não tem coisa melhor que conseguir minha paz — desabafa.

Histórias de ofensas e agressões como a de Ana* desencadearam ao menos 164.575 medidas protetivas para mulheres no ano passado, mostra levantamento feito por O GLOBO com Tribunais de Justiça. O número representa aumento de 18,5% sobre 2014 e é relativo a dez estados e Distrito Federal. Apenas onze dos 27 tribunais procurados enviaram informações.

As medidas de urgência foram asseguradas pela Lei Maria da Penha, que completa dez anos em agosto. Em caso de registro de violência doméstica, a polícia tem de enviar à Justiça o pedido de providências em até 48 horas, diz a legislação. A concessão pode ocorrer de imediato, independentemente de audiência entre vítima e agressor. Apenas no Rio, foram deferidas 21.664 medidas protetivas no ano passado, mais que o dobro dos registros em 2010 (10.080), último ano para qual o TJ-RJ tem dados disponíveis.

— Os números indicam que talvez esteja havendo uma maior conscientização das mulheres sobre os seus direitos. Mesmo que ainda tenhamos uma cultura machista e paternal, a Lei Maria da Penha hoje é conhecida por parte significativa da população — avalia Cristiane Brandão, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ.

Diretora do documentário “Juizados.doc — Um olhar sobre a violência de gênero e as práticas institucionais”, que será lançado hoje, Cristiane lembra, porém, que na prática ainda há obstáculos para a busca de segurança.

— As dificuldades são muitas, e elas podem resultar num recuo desses números. Há relatos de juízes que levam 15 dias para ouvir os agressores e, só então, concedem as medidas. Outro problema é fiscalização. O Estado não tem condições operacionais de colocar um policial ao lado de cada mulher, então o cumprimento do mecanismo depende de que o agressor se sinta intimidado. Caso ele não respeite, é de novo ela quem tem de ir à delegacia.

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Para Izabel Solyszko, assistente social e especialista em enfrentamento da violência contra a mulher, a quantidade de medidas concedidas dá a dimensão do quadro da violência doméstica no Brasil:

— A lei teve um efeito simbólico no que diz respeito ao reconhecimento da violência de gênero como violação aos direitos humanos e crime, e é importante que as medidas protetivas estejam funcionando, ao menos no sentido de serem deferidas. No entanto, o número mostra que a quantidade de vítimas de violência é impressionante. O quadro é de barbárie. Precisaríamos ver também com mais atenção quais os efeitos para as mulheres que conseguiram as medidas.

‘SE ELE ATIRAR, SÓ VÃO SABER DEPOIS’

Há casos como o de Carla*, em que a sensação insegurança parece ser infindável. Separada há quatro anos, a enfermeira começou a receber ameças do marido no ano passado. A Justiça determinou o afastamento dele depois de ela mostrar à polícia mensagens de voz enviadas para o seu celular. Nas gravações, o ex-marido dizia que a mataria. Carla* e o marido viveram juntos por sete anos e têm uma filha de 5.

— O sentimento foi de impotência. Ele achava que poderia me aterrorizar e sair ileso — relata a mulher, de 35 anos. — Ele parou de me procurar depois da medida protetiva, mas caso volte a entrar em contato, sou eu quem tenho a obrigação de avisar à polícia. Se ele resolver atirar em mim, só vão saber depois.

Coordenadora do Núcleo Especializado no Atendimento à Mulher Vítima de Violência (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Arlanza Maria Rodrigues Rebello lembra que não apenas o afastamento do lar e a proibição de aproximação ou contato estão previstas na lei. A vítima pode pedir que a Justiça suspenda visitas a filhos e solicitar o pagamento de pensão alimentícia.

— Vemos que a proteção da mulher tem sido interpretada pelo Judiciário de maneira restritiva. As medidas de caráter penal vêm sendo priorizadas, enquanto as de caráter cível são negadas ou dificultadas — pondera. — Isso fragiliza a proteção da mulher. Às vezes ela volta a uma situação de violência por não ter dinheiro para o leite do filho, por exemplo. A ideia da Lei Maria da Penha era justamente dar uma proteção integral.

Rio de Janeiro, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, São Paulo e Santa Catarina responderam ao pedido de levantamento do GLOBO feito há duas semanas. Outros 16 estados informaram não ter os dados ou sequer responderam. A Secretaria de Políticas para as Mulheres, ligada à Presidência da República, também não forneceu informações atualizadas sobre o Ligue 180, canal de atendimento para mulheres. Impedimentos para a obtenção de números são criticados por profissionais envolvidas no enfrentamento à violência contra a mulher.

— Falta uma política pública de sistematização das informações. A dificuldade de conseguir dados é grandíssima — aponta Izabel Solyszko, lembrando que a Maria da Penha prevê um sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres. — A lei não é criada apenas para a criminalização de atos. Sem dados unificados, não conseguiremos saber como enfrentar a violência doméstica e familiar.

Fonte: O Globo

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