O Supremo poder de legislar
A Procuradoria-geral da República ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5766 contra dispositivos da chamada reforma trabalhista, que impõe restrições inconstitucionais à garantia de gratuidade judiciária aos que comprovem insuficiência de recursos, na Justiça do Trabalho. O julgamento teve início na segunda semana de maio.
Na ADI há requerimento de declaração de inconstitucionalidade do artigo 790-B da CLT (caput e parágrafo 4º), que responsabiliza a parte vencida pelo pagamento de honorários periciais, ainda que beneficiária da justiça gratuita.
Antes da reforma trabalhista, os beneficiários da justiça gratuita estavam isentos; com a alteração da legislação, a União custeará a perícia apenas quando o beneficiário não tiver auferido créditos capazes de suportar a despesa, “ainda que em outro processo”.
Na sessão do dia 09/05/2018 foi lido o relatório e as partes fizeram sustentações orais. O julgamento foi suspenso e retomado dia 10/05/2018, quando, em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso, relator, entendeu que não há inconstitucionalidade nas regras questionadas, uma vez que a limitação tem como objetivo restringir a judicialização excessiva das relações de trabalho. Ou seja, reconhece a limitação imposta, mas não entende que a barreira viola o direito fundamental ao acesso à Justiça.
O relator, lançando mão do supremo poder de legislar, propôs a procedência parcial da ação para estabelecer limites para o alcance da obrigação a outros processos. O limite fixado foi de 30% do crédito, e um piso estabelecido no mesmo valor do teto do benefício do Regime Geral da Previdência Social, hoje em pouco mais de R$ 5 mil.
O STF cuida, zela, protege a Constituição, não legisla… Cada dia há mais perplexidade nas supremas decisões, basta que se submeta ao STF o questionamento de inconstitucionalidade ou constitucionalidade de uma lei e tem-se a possibilidade de criação de uma nova legislação, sem qualquer participação do poder legislativo.
Certamente, para se chegar à conclusão da validade do voto do Exmo. Sr. Relator, haverá a necessidade de uma releitura do artigo 2º da Constituição Federal, que dispõe que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Quando o Judiciário legisla fere, de morte, a separação dos Poderes assentada na independência e harmonia entre os órgãos do poder político. Quebra a necessária regra de ausência de qualquer relação de subordinação ou dependência no que se refere ao exercício das funções do Poder Legislativo, Judiciário e Executivo e, ao mesmo tempo, esvazia o estabelecimento de um mecanismo de controle mútuo entre os três Poderes.
Isso porque nesta situação de concentração de poderes não haveria liberdade política nem controle mútuo e recíproco (checks and balances; sistema de freios e contrapesos entre os Poderes, essenciais às liberdades públicas) entre os Poderes estatais, o que resultaria em despotismo, tirania, arbitrariedade e opressão por parte dos que ocupassem as funções estatais carentes de separação, nocivos tanto ao próprio Estado quanto aos direitos fundamentais dos cidadãos (governados).
Importante renovar a pergunta que o Presidente do Chile, Sebastián Piñera, fez à Ministra Cármen Lúcia, no último dia 27 de abril, “a quem se poderia recorrer quando o STF falha em suas decisões?”. Segundo divulgado pela mídia a pergunta gerou certo desconforto entre os Ministros presentes ao encontro – além de Cármen, os Ministros Dias Toffoli e Edson Fachin – mas foi logo respondida pelo chileno: “À instância suprema”, disse, apontando para cima em referência a Deus.
Ora, é preciso deixar Deus fora disso! Até porque a sua própria existência depende de fé. Uma sociedade mais justa e solidária exige um bom funcionamento das instituições; não pode, em absoluto, depender da fé, a não ser que a intenção seja chegarmos a uma teocracia.
E, voltando ao julgamento dessa Ação Direta de Inconstitucionalidade, após o voto legislativo do relator, o Ministro Edson Fachin abriu divergência e posicionou-se pela procedência do pedido. Registrou que os dispositivos questionados mitigaram em situações específicas o direito fundamental à assistência judicial gratuita, ao direito fundamental ao acesso à Justiça, o próprio acesso aos direitos sociais trabalhistas eventualmente contrariados, à cidadania, à dignidade da pessoa humana, ao objetivo de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, da erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais.
Registrou que há inconstitucionalidade, pois há imposição de barreiras que tornam inacessíveis os meios de reivindicação judicial de direitos a hipossuficientes econômicos. Voto técnico, preciso e atento à barreira imposta pelas alterações da Consolidação das Leis do Trabalho à Constituição. Supremo atuando nos seus exatos limites (sim, há limites!).
Em seguida, o julgamento foi suspenso, pois o Min. Luiz Fux pediu vista regimental, o que significa dizer que, após sua análise, o processo volta à pauta e para tanto ainda não há data definida. Portanto, até o momento, temos o seguinte placar: 1 para o judiciário legislativo X 1 para o Judiciário. Ainda temos 9 pênaltis a serem cobrados e nesse jogo quem está em campo é a democracia e o estado de direito. Oxalá os jogadores não apostem na escalação de Deus.
Texto de Renata Cabral, advogada e sócia de Crivelli Advogados Associados
Fonte: Visão Oeste